O observador e a observação
Nesta panorâmica vista do mirante do Corcovado, uma paisagem tão conhecida mundialmente, vista no início do século XX, é possível distinguir vários pontos, como o Morro da Viúva e a enseada de Botafogo praticamente sem ocupação urbana, o Pão de Açúcar ainda sem acesso aos turistas. Cada um poderá deleitar-se com diversas informações sobre esta parte da Cidade Maravilhosa contida na imagem capturada e “eternizada” em 1906 por Augusto Malta (1864-1957). Uma análise interessante da imagem encontra-se no texto “Paisagem urbana e imagem fotográfica: o legado visual de Augusto Malta” de Antônio R. de Oliveira Jr. publicada em Usos do passado .
Para os fins desta nota metodológica, importa analisar a figura do homem sentado no mirante do Corcovado. De costas para o fotógrafo, o homem deleita-se, como nós, na observação da paisagem. É quase um duplo de Augusto Malta contido na imagem, um observador na atitude de observar.
Independentemente da casualidade ou não do registro, a paisagem é sensivelmente apreendida a partir da figura humana no mirante. A reflexão sobre a fotografia nos põe diante de uma questão filosófica, referente ao processo de conhecimento: se estamos implicados na observação, o que conhecemos é objetivo ou subjetivo? É possível conhecer a realidade “objetivamente”? Outra forma de situar a questão é: a realidade existe independentemente do observador?
Para a maioria das pessoas esta questão jamais se coloca ou é um absurdo na medida em que a realidade existe porque foi criada por Deus, independentemente e antes do homem existir. Para os cientistas que se defrontam cotidianamente com o caráter provisório da verdade trata-se, porém, de uma interrogação sempre presente no seu campo de conhecimento. Contrariamente ao senso comum, a ciência considera um paradoxo a idéia da realidade fora da intervenção humana.
Antonio Gramsci (1891-1937) Biografia tratou do assunto em seus Cadernos do Cárcere. Solicito a paciência do leitor para uma citação longa devido a importância do parágrafo:
“...o que interessa á ciência não é tanto a objetividade do real quanto o homem que elabora os seus métodos de pesquisa, que retifica continuamente seus instrumentos materiais que reforçam os órgãos sensoriais e os instrumentos lógicos (inclusive os matemáticos) de discriminação e de verificação, isto é, a cultura, a concepção do mundo, a realidade entre o homem e a realidade com a mediação da tecnologia. Também na ciência, buscar a realidade fora dos homens, entendido isto num sentido religioso ou metafísico, nada mais é do que um paradoxo. Sem o homem, que significaria a realidade do universo? Toda a ciência é ligada às necessidades, à vida, á atividade do homem. Sem a atividade do homem, criadora de todos os valores, inclusive os científicos, que seria a ‘objetividade’? Um caos, isto é, nada, o vazio, se é que é possível dizer assim, já que, realmente, se se imagina que o homem não existe, não se pode imaginar a língua e o pensamento. Para a filosofia da práxis, o ser não pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se se faz esta separação, cai-se em uma das muitas formas de religião ou na abstração sem sentido”. [1]
O princípio metodológico exposto admiravelmente por Gramsci tem uma relevância enorme no momento atual quando nos deparamos cotidianamente com opções políticas ou técnicas sustentadas no conhecimento científico.
Retomemos a análise da paisagem: se a observação depende do observador, quais os “impactos” que ele produz quando abandona a atitude de contemplador para intervir sobre o que observa? Qual é a implicação desta atitude quando se trata de ciência? Ou, em outros termos, quando a ciência fundamenta a política e a técnica?
A resposta envolve o entendimento de que a relação entre ciência e sociedade se estabelece “por múltiplos canais e mutuamente, em mão dupla” [2] e que, em decorrência, o pressuposto da neutralidade da ciência em matéria de valores é impossível [3]. Uma visão retrospectiva deixa claro como Galileo Galilei (1564- 1642) firmou aliança com uma parte da alta hierarquia eclesiástica e, ao mesmo tempo, colocou-se, com seus inventos militares, a serviço da nobreza florentina. Luiz Pinguelli Rosa observa com pertinência que o cientista e filósofo é “um contra-exemplo vivo acerca da ilusão da ciência neutra. Por isso, talvez incomode tanto até hoje” [2].
Mas é preciso dar o passo subseqüente: se a revolução científica contribuiu fundamentalmente para a instituição do mundo moderno, quer dizer, da organização da sociedade baseada no sistema capitalista, não poderá estar na origem de uma nova forma de organização social, além do capitalismo?
[1] Gramsci, Antonio, 1978. Concepção dialética da história. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.71.
[2] Rosa, Luiz Pinguelli, 1989. Comentários sobre a Crítica da Contribuição de Galileu à Física. In: F L
Carneiro (coord.) 350 anos dos “Discorsi intorno a due nuove scienze” de Galileu Galilei. Rio de Janeiro: Coppe, Editora Marco Zero, p. 102.
[3] Lacey, Hugh, 1998. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial.