O PRIMEIRO ATO PÚBLICO DE RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR NO CHILE
11 de setembro de 1973 ficará na memória do proletariado chileno e mundial como o dramático dia em que a burguesia associada ao imperialismo derrubou o governo da Unidade Popular, eleito em 1970 com um programa de nacionalização do capital financeiro e das empresas de mineração do país, a ser alcançado nos limites da democracia burguesa. O evento comprovou, contra as ilusões democráticas, que para a burguesia a escolha da forma de dominação depende da correlação de forças; de que a melhor forma de dominação (ditadura) burguesa é aquela capaz, nas circunstâncias da luta de classes, de explorar de modo sistemático os operários e os trabalhadores em geral.
O falecimento de Pablo Neruda, 12 dias após o golpe liderado pelo general Pinochet, poeta nacional e Premio Nobel de Literatura em 1971 «por una poesía que con la acción de una fuerza elemental da vida al destino y los sueños de un continente», representa o primeiro ato de resistência à ditadura militar.
As narrativas apresentadas a seguir valem mais pelo teor descritivo e emocional dos fatos relacionados ao funeral de Neruda do que pela ideologia professada, da qual o próprio poeta, aliás, compartilhava.
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Em entrevista para o jornal Le Monde Diplomatique, o fotógrafo Evandro Teixeira fez a narrativa das 36 horas passadas desde a chegada à clínica Santa Maria até o enterro de Pablo Neruda, no Cemitério Geral de Santiago. Na clínica, adentrando-se clandestinamente pela porta dos fundos, descobriu o corpo do poeta. Foi lá que encontrou Matilde Urrutia, companheira de Neruda, recebendo dela acolhida e pedido para a documentação do caminho até o cemitério. Deslocaram-se então para a residência do poeta, La Chascona, naquela fria noite de setembro.
Na sequência quase cinematográfica de fotografias realizadas por Teixeira nesse período de tempo, destaca-se a cena em que, chegando à residência do poeta, a vigília que carregava o caixão de Neruda se depara com um rio que cortava o caminho em frente à casa. O que antes era um riacho transformou-se em rio quando militares destruíram a represa que desembocava ali, com o intuito de dificultar a passagem do poeta, que era visto como principal inimigo do Estado naquele momento. As imagens mostram familiares e admiradores improvisando uma ponte que passa a simbolizar a resistência que aquela caminhada representava frente à ditadura. A vigília foi até a noite, transformando-se, na manhã do outro dia, em uma grande manifestação política em formato de cortejo, que ocorria no mesmo momento em que Pinochet realizava sua primeira coletiva de imprensa para jornalistas estrangeiros, que optaram por ocupar o velório de Neruda.
Mark Eisner, no trecho do livro El llamado del poeta, de 1994, relata de modo mais estruturado essa manifestação:
Sus amigos más íntimos y algunos embajadores extranjeros escoltaron su féretro desde el hogar de su poesía hasta el cementerio. Aquella mañana corrió por todo Santiago, como un reguero de pólvora, que una gran multitud se estaba uniendo a la comitiva del funeral de Neruda. A pesar de los soldados apostados en las calles, armados con rifles automáticos, cientos de personas iban llegando de todas partes para proclamarlo como valeroso defensor de la verdad y para expresar su dolor por las cosas que habían sucedido en los trece días transcurridos desde el golpe. Lloraban la muerte de su poeta, la muerte y desaparición de sus amigos y familiares, y la muerte de su democracia.
Aunque los soldados empuñaban sus armas y se mostraban preparados, solo podían mirar. Pinochet no se atrevió a hacer nada porque, tratándose de Pablo Neruda, las cámaras de los medios internacionales cubrían lo que estaba sucediendo en las calles. El mundo observaba.
Los asistentes andaban junto al vehículo fúnebre y llenaban las callejuelas. El ataúd cubierto de flores no estaba en el interior del vehículo, sino en su parte superior, para que el pueblo pudiera ver, por última vez, a su poeta. Con solemnidad, de forma desafiante, las gentes cantaban la Internacional, con los puños levantados: “Arriba los pobres del mundo, en pie los esclavos sin pan, alcémonos todos al grito: ¡Viva la Internacional!”.
Y por encima del dolor se elevaban los cantos: “¡No ha muerto! ¡No ha muerto! ¡Solo se quedó dormido! ¡Como duermen las flores cuando el sol se reclina! ¡No ha muerto, no ha muerto! ¡Solo se quedó dormido!”.
Os versos, entoados por uma mulher no meio da multidão, convocavam a presença do poeta: “Compañero Pablo Neruda!” e encontrava eco, uníssono, nos participantes do cortejo: “Presente! Ahora y simpre!” [1]
Volodia Teiltelboim, amigo e camarada do poeta, em seu livro "Neruda", de 1984, afirma, com razão:
Ese funeral fue la primera manifestación que se hizo en Chile contra los que asaltaron el poder el 11 de septiembre de 1973. Otro mérito del poeta. Seguía combatiendo después de muerto.
Eduardo Stotz
[1] Essa é a minha memória da notícia relacionada ao funeral, lida no Jornal do Brasil, numa manhã de setembro de 1973, em plena ditadura militar no Brasil.
Passados tantos anos, encontrei o artigo “Amigos enterram Neruda recitando seus poemas”, de Paulo Cesar de Araujo e Evandro Teixeira. Os versos, declamados em voz alta e vigorosa por uma mulher surgida no meio do cortejo, vestida de negro e cabelos desalinhados, assim foram traduzidos para língua portuguesa pelos articulistas:
Não estás morto não estás morto, estas somente dormindo, como dormem as rosas em seus talhos de espinho.
Chamou camarada Pablo Neruda para todos repetirem em coro. Mais à frente ela gritou diante do silêncio de todos.
Não estás morto, não estás morto, está somente dormindo, como dormem as flores quando o sol se reclina.
As informações constam na edição 00171 (10), de 26/09/1973, p. 12 disponível em http://memoria.bn.gov.br/DocReader/030015_09/52264 da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Imagem de capa: Evandro Teixeira - Acervo IMS
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