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Carta a uma amiga sobre guerra e religião

  • encontraponto
  • 16 de set.
  • 4 min de leitura

Em nossa breve conversa sobre os rumos do mundo (que pretensão!), teríamos, inevitavelmente, de falar da destruição do povo palestino por Israel, em nome da aniquilação do inimigo Hamas. O número de vítimas, de mortos, feridos, órfãos e desenraizados não cessa de aumentar tragicamente, verdadeira limpeza étnica, enquanto se delineia, para além das fronteiras atuais, o Grande Israel bíblico, potência regional, subimperialista, temido, aliás por todos os países árabes, até agora coniventes ou temerosos frente a esse poder. Há um consenso cada vez maior, em todas as vertentes de esquerda, a esse respeito. Contudo, silencia-se quando se pensa no sentimento da maioria do povo judeu em aceitar esse massacre sistemático, verdadeiro genocídio. Temor de que a rejeição ao sionismo seja identificada ao antissemitismo? Talvez, em parte. Por outra, para as esquerdas de nossos dias, praticamente socialdemocratas, as religiões não podem ser politicamente abordadas. Esqueceram-se de Marx em “A questão judaica” ou de Rosa Luxemburgo em “O socialismo e as igrejas”, sobretudo por desver a luta de classes impiedosa a atravessar a vida comum.


Desenvolvo a reflexão a seguir sem a intenção de um diálogo teológico, pois não sou, como você, crente.


Recuemos no tempo, antes do sionismo viabilizar-se como movimento político-religioso-militar destinado a restabelecer o antigo reino de Israel (Eretz Israel), mediante a colonização do território ocupado, então, pela população majoritariamente palestina.


Pouco antes do início da II Guerra Mundial, a filósofa e militante católica de esquerda Simone Weil, ao participar de movimentos anticolonialistas e pacifistas, interessou-se, nas palavras de Ecléa Bosi [1], em conhecer a história das religiões. Na leitura do Velho Testamento, indignou-se com a crueldade da ordem de Deus a Saul para perpetrar o extermínio dos amalequitas (Samuel, I; 15) e “a passagem em que o profeta Eliseu fez perecer quarenta e duas crianças (Reis, II, 23-24).”


Qual a necessidade do extermínio ordenado por Javeh, “deus dos exércitos”, naquele longínquo tempo? Para entender, há de se ler os testamentos. Consideremos aqui apenas o caso do extermínio dos amalecitas (ou amalequitas):


1Samuel disse a Saul: ― Eu sou aquele a quem o Senhor enviou para ungi‑lo como rei de Israel, o povo dele; por isso, escute agora a mensagem do Senhor. 2 Assim diz o Senhor dos Exércitos: “Castigarei os amalequitas pelo que fizeram a Israel, barrando‑lhe o caminho quando subia do Egito. 3 Agora vão, ataquem os amalequitas e separem ao Senhor tudo o que lhes pertence para destruição. Não os poupem; matem homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois, ovelhas, camelos e jumentos.


Mas Saul desobedeceu à ordem divina transmitida por Samuel, cumprindo-a parcialmente ao poupar o rei dos amalequitas e o melhor do rebanho com a pretensão de usá-los para sacrifícios. A resposta de Samuel é direta e clara:


22 A obediência é melhor do que o sacrifício e a submissão é melhor do que a gordura dos carneiros. 23 Pois a rebeldia é como o pecado de feitiçaria; a arrogância, como o mal da idolatria. Assim como você rejeitou a palavra do Senhor, ele o rejeitou como rei. [2]


Obediência absoluta, submissão a ordem desumanas. Simone Weil pergunta:


Somos anátemas quando pensamos que a fonte de onde saiu para Israel a ordem para destruir cidades, massacrar povos e exterminar os prisioneiros e crianças não foi Deus; e ter tomado Deus por autor de uma tal ordem não foi um erro incomparavelmente mais grave que as formas mais baixas de politeísmo e idolatria...? (Pensées sans ordre concernant l'amour de Dieu. Paris, Gallimard, 1962, p.72)


Contudo a filósofa assume tal posição inserida no cristianismo, para o qual Deus se fez representar no Messias com a pretensão universal, em nome de toda a humanidade e não da exclusividade judaica como está no Velho Testamento. E a vinda do Reino de Deus significa a transformação do mundo.


Consideremos aqui, cara amiga, uma interpretação do evangelho de Marcos:


Toda a atividade de Jesus é o anúncio e a concretização da vinda do Reino de Deus (Mc 1,15). E isso se manifesta pela transformação radical das relações humanas: o poder é substituído pelo serviço (campo político), o comércio pela partilha (campo econômico), a alienação pela capacidade de ver e ouvir a realidade (campo ideológico). Trata-se de proposta alternativa de sociedade, que leva ao nivelamento fraterno das pessoas.[3]


Eis uma interessante convergência com o pensamento de Rosa Luxemburgo, na obra acima citada. O cristianismo, na sua expressão inicial, apresentava-se, para ela, na forma de um “comunismo de bens”.


Não será por essa perigosa aproximação e devido a obediência cega à palavra do Deus bíblico que o neopentecostalismo investe no Velho Testamento muito mais do que no Novo e desfralda a bandeira de Israel nas manifestações bolsonaristas, principalmente nas ruas da capital de São Paulo?


Eduardo Stotz 15/09/2025



Notas


[1] BOSI, Ecléa. A condição operária e outros estudos sobre a opressão”, Paz e Terra, 1979. p.43-44





Imagem de capa: Manifestantes pró-Bolsonaro em São Paulo Foto: Ansa

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