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COP 30

  • encontraponto
  • 23 de set.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 25 de set.

Em 1998, pesquisadores científicos lançaram Prosas de Manguinhos, uma iniciativa editorial da Cooperativa Cultural de Manguinhos e da Associação de Servidores da Fiocruz, viabilizada graças aos esforços de Pedro Teixeira, Luiz Fernando Ferreira e Antenor Amâncio Filho. Pretendia-se afirmar, num meio onde se impõe a racionalidade objetiva, o gosto pela arte, poesia e literatura. Uma das minhas contribuições intitula-se “Crônica para uma Terra sem Mal", texto aqui reproduzido conforme o original constante nas páginas 83 a 88 do livro citado. Ao republicar no blog Encontraponto, a nossa intenção é a de ser o primeiro de uma série de textos dedicados  à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30), a se realizar em Belém de 10 a 21 de novembro vindouro.



Crônica para uma Terra Sem Mal*

(fragmentos)

 

Eduardo N. Stotz

 

Uma semana de violenta ressaca que bateu a orla marítima do Rio de Janeiro arrastou quase toda a areia da praia de Copacabana, à altura do Posto 5. Num trecho de 100 metros entre as ruas Miguel Lemos e Djalma Ulrich, os técnicos da prefeitura estimaram, desolados, o desaparecimento de 100 mil metros cúbicos de areia.


Um intervalo de 26 anos sem maiores problemas parecia confirmar o controle do homem sobre a natureza em uma cidade que cresceu às custas do mar e dos rios. Cidade erguida sobre aterros. Em vão. Em poucos dias parte do trabalho de remodelação da natureza, ou seja, a ampliação da praia começada em 1958 e concluída em 1971, foi completamente destruída pelas águas do mar revolto.


Descobriu-se, então, pelo estudo do tempo, as inclemências do clima. A atual ressaca fez lembrar de outras, ocorridas no passado ainda durante este século nos anos de 1921, 1924 e 1925, depois do que se seguiram 30 anos de sossego. Em 1955, uma ressaca de grandes proporções levou as autoridades ao projeto de alargamento da Avenida Atlântica elaborado pelo Laboratório Civil de Lisboa. Dois milhões de metros cúbicos de areia foram retirados da enseada de Botafogo para Copacabana. É o que se pode ler no Jornal do Brasil de 9 de outubro de 1997, "El Niño deixa Copacabana sem areia", nas páginas 1 e 22.


O desafio do mar, contudo, é antigo e as tentativas de contê-las datam apenas de 1918. Há um interessante quadro sobre esse tema. O quadro em questão pertence à coleção Sérgio Sahione Fadel e consta no catálogo de pinturas produzido pelo Centro Cultural Banco do Brasil em homenagem ao sesquicentenário do nascimento de Machado de Assis, no ano de 1989. Trata-se da pintura a óleo denominada Efeitos da Ressaca de 1892, em Niterói de Antônio Rafael Pinto Bandeira. Pode-se ler, a respeito daquela pintura, o seguinte comentário, extraído de Dom Casmurro: " ... Uma força que arrastava para dentro, como uma vaga que se retirou da praia em dias de ressaca". Na pintura podemos ver as barcas cantareiras jogadas sobre o cais pelas águas revoltas na Baía de Guanabara. O que não se teria passado então nas praias oceânicas já nessa época?


O desafio do mar sempre trouxe conseqüências trágicas quando, ao fenômeno das marés, se sobrepôs o das chuvas. Um problema particularmente grave para o Rio de Janeiro, uma cidade situada no nível do mar e urbanizada através de canalizações e aterros. Assim, coincidência de chuvas intensas e marés cheias produzem, entre os meses de janeiro a abril, do verão ao outono, com bastante freqüência, catástrofes.


Veja-se a crônica. Alagamentos em 1882 e 1883. A cidade praticamente submergiu em 1888, pouco antes do decreto que aboliu a escravidão. Inundações e desmoronamentos em 1911 e 1928. O canal do Mangue transbordou pela primeira vez em 1944. As tragédias sociais, com mortos e desabrigados, são registrados em 1962, 1966, 1985, 1988 e 1996. A tendência histórica de agravamento das condições de ocupação do território, decorrente de problemas sociais, bem como sua fragilidade diante dos fenômenos naturais está registrada no livro Tormentas Cariocas de Ana Maria de Paiva Macedo Brandão, do Laboratório de Climatologia Geográfica da UFRJ.


Há situações críticas que merecem ser lembradas, como a do desaparecimento da cidade de Itaúnas, no Espírito Santo, processo ocorrido nos anos 50. De acordo com reportagem do programa Ecologia na TV Cultura, em edição do dia 28 de setembro de 1997, essa cidade foi soterrada pela areia e desapareceu. A explicação popular atribuiu o desastroso fim ao pecado cometido pelas autoridades, isto é, a substituição do padroeiro da cidade, um santo de cor negra, por outro de cor branca. Mas o fato é que o processo natural de Itaúnas enterrar-se foi uma conseqüência do progressivo desmatamento que eliminou uma barreira natural contra os ventos implacáveis nessa região. Lenta e implacavelmente, o contínuo transporte dos grãos de areia das praias fez a cidade desaparecer. Uma nova cidade, construída na outra margem do rio Itaúnas, abriga 800 almas nos dias de hoje. Próximo dessa localidade encontra-se uma área de três mil hectares, com matas nativas e manguezal, uma das poucas reservas da biosfera na região sudeste do Brasil.


Imensa, a região amazônica é a maior pletora de biodiversidade do planeta, alvo de atentados e saques cada vez mais destruidores. Após devastarem as florestas do Canadá e as do sudeste asiático, onde, recentemente, aconteceu um incêndio de grandes proporções, empresas madeireiras, com o beneplácito do governo brasileiro, chegaram à Amazônia. Grandes madeireiras da Malásia e da China são proprietárias de 81% das terras situadas em locais privilegiados de espécies nobres de madeiras, como no Juruá, Purus e Madeira, situados no sudeste e sul do Estado do Amazonas. As terras foram compradas nos últimos três anos e representam mais de 1,2 milhão de hectares para exploração da floresta tropical - uma área superior à metade do Estado de Sergipe. Essas informações vêm do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e da Comissão Externa da Câmara dos Deputados e foram divulgadas no O Estado de São Paulo de 19 de janeiro de 1998 pelo Jornal da Ciência (JC E-Mail), um serviço da SBPC, em edição do mesmo dia. 


Devastação de florestas lembram-nos de queimadas e de terras para pecuária extensiva que, por sua vez, trazem-nos a memória sonhos ruins. 


Alguns anos atrás, o romancista Ignácio de Loyola Brandão escreveu "Não verás país nenhum", uma ficção socioecológica de Brasil depois da devastação da floresta amazônica, durante a ditadura militar. É o pesadelo de um imenso deserto e as repercussões do macroclima alterado sobre a vida de um povo cativo, sem liberdades civis e políticas.


Não temos, em nosso país, propriamente desertos. Mas, como existe o semi-árido, na área definida como Polígono das Secas, um extenso e povoado território, podemos dizer que, sim, temos, periodicamente, desertos.


A tragédia que, entre uma seca e outra, há mais de um século, pelo menos, vitima milhões de pessoas no Nordeste, foi antecipada desta vez em meados do ano de 1997, pelo próprio governo federal. As previsões dos efeitos do fenômeno do El Niño sobre o clima para o verão de 1998, nas regiões norte e nordeste, levaram, na época, à constituição de uma comissão interministerial para estudar e propor medidas preventivas.


A devastação de Roraima pelas queimadas iniciou a crônica da catástrofe anunciada. Depois veio a seca no Nordeste e a estúpida informação governamental sobre a insuficiência de cestas de alimentos para distribuir entre os flagelados. Na grande seca deste ano, 10 milhões de pessoas foram afetadas.


Milton Santos, em artigo publicado pela revista Carta Capital de 27 de maio de 1998, afirmou que a política governamental não tem mais preocupações endógenas. Está orientada "para objetivos de natureza global considerados prioritários, como a eliminação do déficit, o pagamento das dívidas externa e interna, os decantados equilíbrios macroeconômicos".


Resultado previsível de tal política: não há recursos para enfrentar questões de ordem estrutural, capazes de resolver o drama da estiagem que se abate sobre milhões de trabalhadores rurais e pequenos proprietários de escassíssima terra. Mas existem recursos para outras políticas, no interesse do secular do coronelismo, o sistema de mandonismo local controlado por grandes proprietários de terras e de almas. Parafraseando o título da obra na qual Sérgio Góes de Paula e César Queiroz Benjamin falam e deixam falar as vozes da terrível seca de 1983, o sertão impropriou-se outra vez à vida, neste ano de 1998.


E é deste povo oprimido, humilhado e sofrido mas com arraigadas e belas tradições culturais, deste "Brasil profundo" (Milton Santos), que vem a manifestação de uma mulher desesperada e triste.


A carta que segue abaixo foi enviada a um médico e pesquisador por uma ex-agente de saúde, residente em distante localidade, onde se encontra um dos sítios arqueológicos mais antigos das Américas.


Sitio do mocó, 18 de maio de 1998.


Felicidades para voce


Oi Dr. estou te escrevendo só pra te dizer que sinto muita saudade de voces daquela equipe que vinha trabalhar com agente.


Olha Dr. aqueles tempo era maravilhoso, mas agora tudo mudou sobre a comunidade está totalmente diferente, entre outras estão péssimas.


Aqui está uma seca orrivel as pessoas não tiverão nada de roca as pessoas aqui estão indo para fora procurar serviso porque aqui não tem, as pessoas que eram empregado para fundação não são mais, só está existindo dois funcionario. Eu mesmo faz anos que sai estou desempregada, tenho feito de todo geito para ver se vivo mais está dificil, comesei trabalhando na fabrica custurando mais não deu, não aparece serviso, faço croche mais é muito dificil arrumar alguma encomenda, estou com dois rapaz em casa o marido e eu todo parado.


Tem dia que fico muito nervosa de pensar como vamos viver, agora pergunto será que agente consegue viver sem trabalho sem salario? Me dá um disispero que magino em toda besteira.


Desculpe, Dr. em eu está lhe alugando com meus problemas, é que tem dia que tenho vontade de conversar com alguem e eu pensei em voce, voce é uma pessoa legal eu lembro muito em voces, em fim todos voce.


Um abraço e aqui termina uma mulher disisperada e triste.


Cabe dizer outra vez: sim, temos desertos que brotam quebradiços do enxugo das águas dos céus e das entranhas da terra. E habitam na alma das gentes, mais seca do que os leitos dos rios e as colheitas. Desertos que trazem, depois da urgência da fome, sonhos lentos como nuvens quase imóveis em amplíssimo céu azul, esperança do retorno antes do êxodo. Sim, temos desertos que sugam, até as últimas lágrimas, as pessoas desse Brasil profundo.



Notas

*Terra sem mal é a denominação do nomadismo secular dos guaranis — ainda existente até o início do século XX — em busca da Terra Sem Mal, situada, conforme as tradições, ora no centro da Terra, ou a leste, do outro lado dos mares. De acordo com Helene Clastres, a busca significava:


"...uma Terra Prometida na própria terra e que contudo não será um reino, porém, ao contrário, a abolição de toda forma de poder." (Helene Clastres. Terra sem mal. São Paulo: Brasiliense, 1978, p.113)


Para um entendimento sintético ver o excelente artigo de Bartolomeu Melià, S J. A Terra Sem Mal dos Guarani. Economia e profecia. Revista de Antropologia. USP, 1990.



Imagem de capa: desenho de Davi Kopenawa, no livro "A queda do céu: palavras de um xamã yanomami". São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 487.

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