Paris: Um olhar estrangeiro e caleidoscópico (Os muros de Paris)
O mês de maio no site Encontraponto.com foi dedicado à memória das lutas e experiências revolucionárias, dentre as quais destacamos a Comuna de Paris.
Voltemos, pois, ao tema da relação entre memória e história.
A propósito, em setembro de 1999, respondendo a um pedido de um companheiro para falar acerca de seu período de pesquisa de doutorado na Europa, Victor Meyer¹ apresentou suas impressões iniciais, a começar pela de Paris. A carta transformou-se num texto político disponível no portal do Centro de Estudos Victor Meyer.
Eis o parágrafo no qual situa a questão relevante para ele:
Começo por Paris. Minha visão sobre essa cidade foi mudando como num giro de caleidoscópio, até estabilizar-se numa representação muito distante da inicial. Cheguei esperando encontrar (que ingenuidade!) imagens da histórica capital das revoluções, em coexistência com as imagens invisíveis a olho nu (estão restritas aos arquivos, e às bibliotecas). Aí estão, bem à vista, a arquitetura do século XIX e anteriores, as resplandecestes paisagens urbanas. Mas, tudo isso nos traz a memória da aristocracia. Vendo os museus, os monumentos, parece que foram os nobres os vencedores de 1789, a cidade é deles. Compartilhada, no máximo, com as elites subseqüentes. Essa persistência da memória aristocrática poderia ser explicada, supostamente, pelo caráter de longo prazo dos fatos históricos. Mas, isso seria muito estranho. Por que a longue durée alcançaria apenas os nobres? Por que a memória do povo estaria fora dessa suposta lei histórica, condenada ao rápido desaparecimento? Algumas pistas podem nos levar ao Estado, esse Ente que parece ter o dom de manipular a duração dos movimentos históricos, efetivando a longue durée ou anulando-a.
Nada restou dos vestígios materiais da Comuna de Paris numa França burguesa que traz, na história, o sangue dos trabalhadores nas mãos desde a revolução de 1871? Insistamos, porém, na busca das marcas deixadas pela Comuna no urbanismo de Paris. O que encontramos é aparentemente quase nada: uma rua com o nome do comunardo internacionalista Eugène Varlin no 10º distrito (arrondissement), localizado às margens do Sena, no centro-leste da cidade, denominação dificilmente identificada em seu sentido histórico pelas milhares de pessoas que por ali transitam diariamente.
Entretanto, há outros registros. Jacques Tardi, por exemplo, ilustrou Le Cri du Peuple, romance de Jean Vautrin, publicado numa série de quatro partes entre 2001 e 2004, das quais a primeira (O grito do povo – Os canhões de 18 de março) e a última (O grito do povo – O testamento das ruínas) tiveram uma edição brasileira pela Conrad Editora, em 2005.
Há permanências da Comuna em Paris que, apesar de virtuais, estimulam atividades e encontros presenciais, como se pode avaliar acessando a página Commune1871, para as quais chamamos atenção na postagem anterior sobre o tema.
As comemorações da Comuna, a exemplo daquela dos 150 anos promovida pelos operários da construção civil, cuja imagem é apresentada na capa da publicação Viva a Comuna!, mostram a permanência de seu ideário na medida em que remete à necessidade da luta contra o sistema capitalista e sua ordem política, encarados como fim da história.
Se a audácia revolucionária voltar a surgir como uma possibilidade, então a experiência da conquista do poder será atualizada à luz das circunstâncias. Talvez a perspectiva de guerra a se delinear ameaçadoramente no horizonte temporal de nossos dias venha a situar outra vez o sentimento nacional como móvel da ação revolucionária, tal como em 1871. A democracia direta, com a supressão dos poderes do Estado burguês, e a organização armada dos trabalhadores, se vier a se colocar, precisará superar os equívocos da Comuna, dentre os quais a crença na pequena-burguesia como porta-voz do “povo”, quando na verdade esta fração de classe era – e sempre será – vítima das suas próprias ilusões de ser representante do povo, que arrasta consigo o proletariado, com todas suas consequências trágicas.
Devemos esperar que as reflexões de um Lissagaray venham a ser lembradas a tempo oportuno: “Em justa honra aos delegados a amarga verdade deve ser dita. A sua ignorância não era simulada, apenas demasiado real. Em grande parte ela era filha da opressão do passado”
O que permanece? Do controverso Victor Hugo nos vem à lembrança esta frase: “O cadáver está na terra, mas a ideia está de pé”.
1 Victor nos deixou dois anos depois, imediatamente após a defesa de sua tese, mas a memória dele permanece viva conosco. Uma breve biografia encontra-se no Marxists Internet Archives, escrita por sua
companheira Eliza Tieko, disponível em:
Comments