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2017: O começo da exuberância irracional do capitalismo na China

Todo começo é imprevisível, teria dito um poeta. Em 2015, cinco estudantes de um grupo de ciclismo da Universidade de Pequim tiveram uma ideia para colocar-se à frente da experiência de partilhamento de bicicletas como a Citybike nos EUA e a “Boris Bike” no Reino Unido: e se a partilha pudesse ser feita sem um local de estacionamento fixo ou “doca”? Foi assim que nasceu a Ofo, empresa constituída por esses estudantes, com financiamento de ex-alunos da universidade. O sistema pensado era de fácil execução: “os usuários baixam um aplicativo que informa onde encontrar uma bicicleta, que eles desbloqueiam digitalizando um código QR em seus telefones ou usando uma combinação enviada. Ao contrário dos serviços tradicionais de aluguel, no entanto, que exigem que as bicicletas sejam devolvidas a uma estação fixa, os utilizadores são livres de deixar as bicicletas onde quer que a viagem termine.”[1] Uma taxa depositada em favor da empresa e o recurso ao celular como identificação de usuário iria requerer, de um lado, pontos de conexão “universal”, ou seja, uma plataforma de aplicativo e, de outro, fábricas.


Ao lado da Ofo, com 10 milhões de usuários de suas bicicletas amarelas em Pequim e outras 33 cidades, surgiram outras, a exemplo da Mobike e a Bluegogo, cuja rápida expansão atraiu investimentos das gigantes como Alibaba e Tencent, na China. O negócio do compartilhamento de bicicletas[2] dominou o cenário das “startups”, levando a Xinhua News a classificá-lo como uma das quatro grandes inovações da China em 2017. O caso da Mobike é ilustrativo do caráter expansivo do capitalismo: com investimento liderado pela Tencent e Warburg Pincus, atraiu a participação da gigante de viagens online Ctrip e do Huazhu Hotels Group, que administra mais de 3.000 hotéis na China, e os investidores Sequoia China e Hillhouse Capital[3]; daí saltou rapidamente a fronteira nacional para a Europa, onde adquiriu a Skyscanner, empresa de busca de voos com sede na Escócia por 1, 4 bilhão de libras, ou aproximadamente 1,74 bilhão de dólares. A Mobike, fundada por Hu Weiwei e Davis Wang, ex-chefe da Uber Shanghai, contou com a Foxconn para duplicar a capacidade de produção para 10 milhões de bicicletas por ano.[4]


A narrativa acima é a descrição de uma economia sustentada no capital fictício, ou seja, de expansão baseada na alavancagem de investimento com dinheiro de terceiros. A alavancagem do investimento beneficiou-se do fato de que as garantias dos investidores oferecidas pelas empresas de partilhamento de bicicletas seriam os dados dos usuários (qualquer semelhança com o que se passa conosco quando usamos celular ou o navegador de internet é mera coincidência!) mais do que as viagens propiciadas pelos veículos. Contudo, “o que estas empresas não previram foi o elevado custo de manutenção das bicicletas de fabricação barata e a série de leis sobre dados que em breve seriam publicadas e que restringiriam as suas opções de fluxo de caixa relativamente à venda de dados.” [5] Como sempre, a lucratividade real depende da transformação produtiva do investimento – o que implica exploração da força de trabalho para a produção da mercadoria (bicicleta) – bem como a sua disponibilização para uso (compartilhamento ou aluguel). A falência da Bluegogo no final de 2017 acendeu o sinal de alerta no mercado e autoridades. Do anúncio de um pequeno problema de tesouraria, a realidade explodiu na demissão dos trabalhadores e até o pagamento do aluguel de seus escritórios não aconteceu. E, no final do ano, “as agências noticiosas informaram que o CEO da Bluegogo tinha desaparecido e que, após a falência da empresa, os depósitos dos usuários não seriam devolvidos.”[6]


Se o problema ficasse limitado ao caso do aluguel das bicicletas sem estação de devolução (ou mesmo de automóveis, como se seguiu) seria forçar um tanto a realidade alegar que a China estava a atravessar um momento semelhante àquele que, em 1996, Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve (Banco Central dos EUA), denominou de exuberância irracional. Entretanto, em 2017, segundo Michael Roberts, a própria economia chinesa estava a beirar o precipício. Para superar a grande recessão mundial deflagrada nos Estados Unidos uma década antes, o governo chinês concentrou esforços no setor de construção civil, deixando a iniciativa nas mãos do setor privado e dos governos locais. O resultado foi um aumento nos preços e a expansão maciça da dívida, num contexto em que Roberts admitia a possibilidade de que, tal como nas principais economias capitalistas, o setor fosse composto por algo entre 15 e 20% de empresas “zumbis”. O setor imobiliário tornou-se o centro dinâmico da especulação e a “Evergrande”, a maior incorporadora, a empresa mais endividada do planeta, o símbolo da prevalência do capital privado no país. A securitização da dívida privada pelo Banco Central chinês impediu o colapso econômico, mas o problema persiste. Então agora sabemos porque o caso das bicicletas era apenas o que estava à tona, pois a parte submersa do iceberg era constituída pelo setor imobiliário e suas conexões financeiras nacionais e internacionais. É por isso que é cabível falar em exuberância irracional do capitalismo na China.

[1] 1421 Consulting Group. Alisson Laphen. Bike Sharing in China: What happened to the craze? - January, 2, 2020. Disponível em https://www.1421.consulting/2020/01/bike-sharing-in-china/ [2] Obviamente, sob o capitalismo onde há oferta existe uma demanda. Assim, embora não seja o nosso propósito estudar a reforma educacional ocorrida na China nas duas últimas décadas, acentuada em 2017 com a “Double First-Class Initiative” (Iniciativa Dupla de Primeira Classe), um programa de padronização do ensino universitário integrado internacionalmente, envolvendo 42 universidades e 95 universidades de primeira classe, para criar a principal força motriz do desenvolvimento de peritos de alto nível. Para mais informações, ver https://www.cwrepresentation.com/article/double-first-class-list [3] TECHCRUNCH. Jon Russel. China’s Mobike raises $215M led by Tencent for its bicycle sharing service - January 4, 2017 https://techcrunch.com/2017/01/04/mobike-series-d-215-million-tencent/ [4] THE GUARDIAN. Nick Van Mead. Uber for bikes: how 'dockless' cycles flooded China – and are heading overseas – Wed, 22 Mar 2017. Disponível em https://www.theguardian.com/cities/2017/mar/22/bike-wars-dockless-china-millions-bicycles-hangzhou [5] Ver nota 1 [6] Idem.

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