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Chips and Science Act e a determinação incontornável do capitalismo

Comecemos por afirmar que se aplica à compreensão do desenvolvimento do capitalismo o provérbio “quanto mais muda, mais permanece o mesmo”. Plus ça change, plus c'est la même chose escreveu Jean-Baptiste Alphonse Karr (1808-1890), jornalista, crítico e novelista francês. Repetido secularmente, tem o sentido, quando referido a um sistema em permanente mudança – e aqui adotamos a abordagem de Marx e Engels apresentada no Manifesto de 1848 – de um aparente paradoxo.


A seguir nos propomos a desfazer a ideia de paradoxo para acentuar o entendimento de uma contradição estrutural, trazendo evidências baseadas em análises sobre a eficácia da Chips and Science Act (Lei sobre os Chips e Ciência, doravante denominada Lei dos chips), adotada há um ano nos EUA. Tomamos como referência principal artigos publicados no início de agosto de 2023 por The Economist, a porta-voz online do capital financeiro anglo-americano, e em seguida apresentamos análises específicas de publicações da área tecnológica interessadas no assunto.


Numa avaliação preliminar, The Economist apresenta o cenário do problema: um terço das receitas totais de semicondutores que sustentam smartphones, data centers, modelos de inteligência artificial é fornecido por fábricas estadunidenses, com o detalhe de uma parte considerável advir de contratantes da Ásia (Coréia do Sul, Japão, Taiwan e China). A relevância dos chips do ponto de vista econômico e geopolítico – constituem o insumo principal para o combate militar, acrescenta o artigo – levou o governo de Joe Biden a encaminhar e conseguir a aprovação da Chips and Science Act (Lei dos Chips), “um pacote de subsídios, créditos fiscais e outros adoçantes de US$ 50 bilhões para trazer a fabricação avançada de chips de volta à América”. [1] Devemos entender, portanto, que a hegemonia dos EUA no sistema capitalista em sua fase imperialista não pode prescindir de uma forma de “capitalismo de Estado”.


Dada essa situação, a dúvida da revista The Economist é apresentada diretamente, sem meias palavras, formulada aliás no próprio título do artigo: “Quão real é o renascimento da fabricação de chips nos Estados Unidos?” [2] Em publicação anterior, o periódico havia explicitado o problema e também apontado o desafio: “A América está a construir fábricas de chips. Agora é preciso encontrar os trabalhadores”.[3] Os investimentos na construção de novas fábricas de semicondutores atraídos pelos subsídios da Lei dos Chips esbarram, contudo, numa determinação inflexível: “...será que [os fabricantes nos EUA] conseguem encontrar trabalhadores para as operar?” O desafio é “encontrar trabalhadores”. Significa que, ao deparar-se com um dos menores níveis de desemprego em 50 anos, as empresas não estão conseguindo contratar empregados com salários abaixo do que seria compatível com as taxas de lucro projetadas para os investimentos realizados. Resumidamente, quanto menor o desemprego, maiores são as exigências salariais dos trabalhadores, mais difícil é “encontrar trabalhadores”. Como sempre, a migração (no caso, mediante uma relativa abertura da fronteira mexicana) passa a ser uma alternativa para impor o rebaixamento dos salários, porém representa “custos políticos” para o governo Biden, porque enfraquece sua base de apoio eleitoral. [4]


Finalmente, em outro artigo, a dimensão geopolítica da questão dos chips é desenhada com tintas fortes. Interessa-nos aqui destacar que a tentativa, por meio da Lei dos Chips, de enfraquecer o controle da China sobre o setor estratégico da indústria, simultaneamente a de preparar os EUA e seus aliados para um confronto militar com aquele país, são por enquanto consideradas de baixa eficácia na medida em que ignoram o “estado real da questão”.


Reproduzimos aqui a avaliação do periódico:


"Em vez de serem cortados, os laços comerciais entre os Estados Unidos e a China são duradouros – apenas em formas mais emaranhadas. Os parceiros comerciais preferenciais do governo americano incluem países como Índia, México, Taiwan e Vietnã, nos quais espera estimular o 'friendshoring' da produção para substituir as importações que antes viriam da China. E o comércio com esses aliados está crescendo rapidamente: apenas 51% das importações americanas de países asiáticos de “baixo custo” vieram da China no ano passado, abaixo dos 66% quando as primeiras tarifas do governo Trump foram introduzidas cinco anos atrás, de acordo coma empresa de consultoria Kearney. O problema é que o comércio entre os aliados dos Estados Unidos e a China também está crescendo, sugerindo que eles muitas vezes atuam como centros de embalagem para o que, na verdade, continuam sendo produtos chineses. Esse fluxo de produtos significa que, embora os Estados Unidos não estejam comprando tanto diretamente da China quanto antes, as economias dos dois países ainda dependem uma da outra". [O trecho em negrito é nosso.] [5]


A opinião acima endossa os resultados da pesquisa Is US Trade Policy Reshaping Global Supply Chains? (A política comercial dos EUA está remodelando as cadeias de suprimentos globais?), de Caroline Freund e outros, publicada como paper em maio de 2023 pelo Fundo Monetário Internacional.


Os artigos de publicações especializadas do ramo de semicondutores confirmam a importância da China. Um exemplo é “A quota da China na capacidade global de fabricação de wafer continua a aumentar”, de 21 de fevereiro de 2022.[6], [7]

Por outro lado, informações relacionadas às transações entre as empresas do ramo apontam para um quadro de retração econômica mundial[8], acompanhado de disputas pela supremacia no mercado de semicondutores entre as seis principais empresas do ramo, a saber: Samsung, TSMC, Micron, SK Hynix, Kioxia e Western Digital. É o que se pode depreender da notícia sobre a pretendida fusão entre a Kioxia, do Japão, e a Western Digital, dos EUA. [9] Provavelmente parte dos recursos do fundo bilionário da Lei dos Chips será absorvida nesse processo de fusões e redivisão de mercado.


Porém o que não aparece nas notícias da The Economist é que os custos de construção e de funcionamento de fábricas na China são muito mais baixos do que nos Estados Unidos, não sendo improvável que as instaladas neste país continuem a apresentar crescimento de capacidade e de inovação. Por “funcionamento” deve-se entender os “custos de produção”, dentre os quais o valor da força de trabalho. A quota de participação da China e do leste asiático na produção de circuitos integrados no mercado global tende a aumentar: “Prevê-se que a China e a Ásia-Pacífico aumentem a sua quota conjunta do mercado mundial de Circuitos Integrados de 63,8% em 2020 para 68,1% em 2025.” [10]


A que conclusões chegamos, provisoriamente?


Os “custos do trabalho” apontados nos EUA colocam em questão a pretendida superioridade tecnológica da potência imperialista, o que reforça a ideia da impossibilidade norte-americana de se desvencilhar das relações de investimento e de comércio com a China num prazo mais curto. Mas a política estadunidense não é alienada: opera num processo de conflito de longa duração e consiste em esticar paulatinamente a corda, impondo restrições de um lado e drenando fabulosos gastos públicos por outro, contando para isso com a pletora do capital financeiro.


Apesar das restrições políticas ao intervencionismo estatal em curso nos EUA apresentadas pela The Economist (há algum tempo, aliás), a disputa imperialista entre EUA e China e seus respectivos aliados põe o capitalismo de Estado na ordem do dia. Não foi a primeira nem será a última vez, bastando lembrar, como a mais recente, a intervenção de Obama para salvar a indústria automobilística americana da crise de 2007-2009.


Com o intervencionismo estatal, as tendências nacionalistas incensadas pelas grandes e pequenas burguesias, à direita e à esquerda do espectro político, assumem o primeiro plano e passam a encobrir a contradição entre capital e trabalho na conjuntura das lutas políticas; mais ainda, as burguesias de cada centro imperialista procuram convencer os trabalhadores a escolher o lado de sua própria nação, com o agravamento da exploração da força de trabalho enquanto exigência decorrente da “defesa nacional”.


A relação social fundamental do capitalismo é a da exploração da força de trabalho, quer dizer, da extração da mais-valia. Trata-se da determinação incontornável do sistema capitalista, sem a qual não subsiste. O capitalismo, nesse sentido, ainda é o mesmo secularmente; contudo, as formas de sua manifestação variam conforme as fases de seu desenvolvimento e avançam desigualmente nos diversos países. No final das contas, mais importante é ter em mente que a luta de classe potencialmente implicada nesta relação social fundamental poderá superar a sua determinação, síntese da dialética de necessidade e liberdade, abertura de um futuro possível – se os trabalhadores conseguirem mobilizar-se de modo politicamente independente.

[1] O valor global inclui, além dos subsídios e créditos, recursos para pesquisa e treinamento da força de trabalho no valor global de aproximadamente US$ 280 bilhões. Para mais informações o verbete da Wikipedia é uma referência inicial de pesquisa. https://en.wikipedia.org/wiki/CHIPS_and_Science_Act#:~:text=The%20CHIPS%20and%20Science%20Act,semiconductors%20in%20the%20United%20States.

[2] The Economist, 7 de agosto de 2023: How real is America’s chipmaking renaissance? Disponível em https://www.economist.com/business/2023/08/07/how-real-is-americas-chipmaking-renaissance?

[3] The Economist, 5 de agosto de 2023. America is building chip factories. Now to find the Workers. Disponível em https://www.economist.com/united-states/2023/08/05/america-is-building-chip-factories-now-to-find-the-workers

[4] Não por acaso a candidatura de Trump novamente projeta-se em primeiro plano no cenário eleitoral de 2024.

[5] The Economist, 8 de agosto de 2023: How America is failing to break up with China. Disponível em https://www.economist.com/finance-and-economics/2023/08/08/how-america-is-failing-to-break-up-with-china

[6] Design & Reuse. China's share of global wafer capacity continues to climb (A quota da China na capacidade global de fabricação de wafer continua a aumentar). 21.02.2022. Disponível em https://www.design-reuse.com/news/51465/global-ic-wafer-capacity-2021.html#:~:text=Worldwide%20IC%20wafer%20capacity%20at,capacity%20to%20process%203.5%20million.

[7] Wafer ou “biscoito” é o termo utilizado no setor para designar uma fatia retirada de um lingote de cristal de silício. O wafer faz parte da fabricação de microprocessadores para computador. Ver a respeito https://www.techtudo.com.br/noticias/2012/11/wafers-e-cis.ghtml

[8] As informações sobre os resultados da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), a maior montadora e fabricante de chips do mundo, sinalizam a recessão por meio de receitas em 2023 abaixo do ano anterior. Computerworld, 12.04.2023: Queda de semicondutores emite um aviso para a economia global. Disponível em https://www.computerworld.com.pt/2023/04/12/queda-de-semicondutores-emite-um-aviso-para-a-economia-global/

[9] EDN – Voz do engenheiro, 19.07.2023: O que levou às negociações de fusão entre a Kioxia e a Western Digital, Disponível em https://www.edn.com/what-led-to-merger-talks-between-kioxia-and-western-digital/

[10] Design & Reuse. Sales of Logic ICs Account for Largest Share of China's IC Market in 2020 (Vendas de ICs lógicos respondem pela maior participação no mercado de IC da China em 2020), 18.02.2021. Disponível em https://www.design-reuse.com/news/49515/2020-china-ic-market-by-product-type.html


*Imagem de capa: site Computer World.

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