O fim e os meios
- encontraponto
- 25 de ago.
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João Ferreira
No ensaio “O reformismo no movimento operário: a polêmica de Rosa Luxemburgo com Lenin em 1904”, publicado na postagem anterior, apresentamos a contribuição da revolucionária polonesa-alemã ao definir uma linha de atuação para um período de lutas que ainda se mantinham nos estreitos limites da sociedade burguesa. O que fazer nessas circunstâncias, além de desenvolver a propaganda do objetivo final em cada luta parcial? [1]
Quando a jovem “marxista” [2], oriunda da Polônia, começa a participar nas fileiras da social democracia alemã, depara-se com um país em rápido e amplo crescimento econômico. O fim das leis de exceção, ou seja, de perseguição aos socialistas, em 1890, permite uma ampla mobilização operária por aumentos salariais e, com apoio do partido no parlamento (Reichstag), encaminhar a luta pela jornada de 10 horas de trabalho diárias. Era uma pauta de reformas. Porém a perspectiva dominante não era revolucionária e sim reformista.
O paradoxo da socialdemocracia nesse momento consiste em oficialmente afirmar o programa do partido, pautado pela luta de classes, para negá-lo na prática. Mesmo a proposta de Eduard Bernstein, de revisar completamente o marxismo em defesa do reformismo apresentada na obra Os pressupostos do socialismo e as tarefas da socialdemocracia alemã — rebatida de modo contundente por Rosa Luxemburgo em Reforma ou revolução, em 1899 — apesar de derrotada no Congresso de Desdren, em 1903, não modificou a situação. O reformismo era “infatigavelmente” praticado tanto pela liderança sindical, a exemplo de Carl Legien, presidente da Comissão Geral dos Sindicatos entre 1891 e 1919, como pela liderança política, representada Ignaz Bauer, secretário do partido socialdemocrata, mediante um “praticismo sem teoria”. [3]
Para enfrentar esses limites, Rosa Luxemburgo teve de reafirmar praticamente a perspectiva revolucionária, o que fez, entre outras oportunidades, na tomada de posição contra a participação em governos burgueses, em 1899, e na intervenção sobre a jornada de 8 horas diárias no congresso do partido, em 1902.
No texto “Uma questão de tática”, publicado na imprensa socialdemocrata alemã em julho de 1899, Rosa parte do fato da participação de Millerand no governo burguês de Waldeck-Rousseau para se perguntar das justificativas da entrada no governo por e para os interesses do proletariado. Haveria uma posição a ser adotada no geral ou seria equivalente aos governos municipais ou, ainda, admissível e necessário em certas condições? [4]
Nas quatro páginas do artigo, Rosa aponta os termos da concepção reformista de Millerand, a saber, da introdução gradual do socialismo na sociedade burguesa, com as pequenas melhoras na sorte do proletariado baixadas por decretos governamentais. Que reduz o socialismo a um democratismo burguês ou a uma política operária burguesa. Contrariamente, ela afirma que o socialismo somente é possível após a destruição do estado burguês. Quaisquer concessões feitas à participação em governos burgueses tem lidar com o fato, diz ela, de que para a socialdemocracia não importa o que sim como se encaminham as reformas sociais, a saber dependente das lutas e não da ação governamental. Então retoma a posição de Marx e de Engels de que a socialdemocracia precisa, nos limites da sociedade burguesa, estabelecer a sua atuação no parlamento, o órgão legislativo do Estado burguês porque sua atividade nele pode simultaneamente atacar a legislação burguesa e o governo burguês. Em contraposição, participar neste governo constrange o partido a cumprir as leis do Estado burguês e sua ação vê-se bloqueada para uma oposição de princípio.
Em síntese, a posição geral do partido revolucionário deve ser a de uma oposição ao sistema capitalista e da ordem que o expressa e assegura, ressalva feita à utilização do parlamento para fins de agitação revolucionária e de ampliação da esfera de influência sobre as camadas não organizadas dos trabalhadores.
No final do texto, aventa a possibilidade do proletariado, numa situação revolucionária, apossar-se do governo sem ainda poder exercer o poder político, devido a sua fraqueza política, marcada, dentre outros aspectos, por vacilações sobre a democracia burguesa, o que, sabemos, dividiu o proletariado alemão em 1918-1919. Esboçada em poucas linhas, antecipa a tese dos governos operários formulada no IV Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1922, quando ela não estava mais viva.
Para tornar-se capaz de aproveitar uma situação revolucionária quando esta viesse a se configurar, o proletariado teria que aprender, ao longo de suas lutas parciais, a identificar seus inimigos (e amigos) de classe, na perspectiva da conquista do poder do Estado e da futura instauração de sua ditadura revolucionária.
O esforço de Rosa, em toda a sua militância, foi o de contribuir para a emergência desse entendimento pela vanguarda da classe operária. Assim é que, em 1902, debate com a direção do partido socialdemocrata a questão da jornada das 8 horas de trabalho diárias. A crítica toma como ponto de partida o relatório da bancada parlamentar que recuava em relação ao programa mínimo das 8 horas em nome da possibilidade de aprovar a jornada de 10 horas de trabalho. A alegação de se tratar de uma mera formalidade ela contrapõe: “Apenas exigindo da sociedade burguesa tudo o que ela é capaz de conceder é que nós conseguimos, aqui e ali, obter uma pequena parte”. Por outro lado, tratava-se de uma capitulação, uma vez que,
“Adiada até algum momento futuro, colocada após a exigência que é mais fácil de se realizar, a do projeto de lei de dez horas, a jornada de oito horas será de fato removida por nós da política prática. Nós não devemos nos iludir quanto a isso”. [5]
Na emergência da “política prática”, ou seja, do oportunismo, no partido, ela a denuncia o que viria a ser a tendência dominante nos anos seguintes, na organização do marxismo oficial por Kautsky, representando a ala do “centro” do partido face aos embates entre a esquerda e a direita. A bancada parlamentar, apoiada na direção do partido e sustentada na liderança sindical, não desistia formalmente da luta pela jornada de 8 horas — uma exigência do “programa mínimo” do partido aprovada no congresso de Erfurt, em 1891 —, mantendo-a, porém, apenas formalmente.
Ao negar o recuo e as emendas na “menor moeda das exigências burguesas”, ela levanta o problema geral da luta revolucionária: porque representavam uma tendência perigosa, de capitulação à ordem burguesa e, simultaneamente, de descrédito na capacidade de luta do proletariado. Frente ao oportunismo em evolução dentro da socialdemocracia alemã, Rosa adverte que a mobilização das massas operárias constituía o único caminho, confirmando, ao citar Clara Zetkin, que “o coração de nossa luta está na agitação, não no Reichstag”, induzindo as ações parlamentares com “o impulso necessário pela grande massa de trabalhadores”. [6]
Importa ainda observar que as contribuições de Rosa Luxemburgo não pertencem à tradição da esquerda brasileira, dominada pela política de colaboração de classes. Mas este é assunto para outro ensaio, para o qual a contribuição mais significativa veio de Eurico Mendes ou Ernesto Martins, pseudônimos de Érico Sachs. [7]
Notas
[1] O objetivo final da luta política do proletariado, ressaltemos, não é o socialismo, mas a conquista do poder político com esta meta no horizonte histórico; a conquista se impõe para expropriar a burguesia dos meios de produção e dos bancos, de modo a criar, adiante, as premissas materiais para o controle da sociedade pelos trabalhadores e orientar a produção para a satisfação das necessidades sociais; o Estado emergente na revolução liderada pelo proletariado tem que ser uma ditadura de classe exercida sobre a burguesia, suprimindo a representação política e a autonomia das instituições estatais mediante o exercício direto do poder, simultaneamente executivo legislativo e judiciário. A formulação advém da experiência histórica da Comuna de Paris, em 1871, quer dizer, do aprendizado histórico que Marx e Engels fizeram dessa experiência do proletariado parisiense, incorporada claramente nas críticas aos programas políticos da socialdemocracia alemã (Critica ao Programa de Gotha, 1875; Crítica ao Programa de Erfurt, 1891).
[2] Ver Paul Frölich. Rosa Luxemburgo: pensamento e ação. São Paulo: Boitempo, 2019. Para Rosa, a concepção materialista da história, teoria fundamental do pensamento de Marx e de Engels, subjacente a todas suas intervenções, era uma teoria a ser desenvolvida e confrontada na luta de classes. Rosa nunca se declarou “marxista”, essa invenção de Kautsky (ver, a propósito o ensaio Marx e o marxismo, de Georges Haupt, disponível na Biblioteca Socialista de Encontraponto em https://www.encontraponto.com/biblioteca-socialista . Suas posições teóricas mantiveram-se até o final de sua vida, abruptamente interrompida pelo brutal assassinato em 1919. Nessa compreensão, parece-nos equivocada, como faz Isabel Loureiro em sua apresentação ao primeiro volume dos Textos Escolhidos, contrapor a jovem que defendia “uma posição marxista ortodoxa e dogmática” à militante madura destacando-se, poucos anos depois. “em suas elaboradas análises políticas”.
[3] Erico Sachs. Marxismo e Luta de classes: questões de estratégia e tática. Salvador: Centro de estudos Victor Meyer, 2010. Disponível em https://centrovictormeyer.org.br/publicacoes/?e-page-02b75b2=3
[4] Rosa Luxemburgo. Una cuestión de tactica. Disponível em https://www.marxists.org/espanol/luxem/1899/7/tac.htm
No ano de 1899 Alexander Millerand assumiu o ministério do Comércio, da Indústria e dos Telégrafos do governo burguês de Waldeck-Rousseau, na França. Millerand teve longa carreira como político burguês reformista, de 1899 a 1924, chegando à presidência da França.
[5] Rosa Luxemburgo. A jornada de 8 horas no Congresso do Partido. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1902/09/19.htm
[6] Idem.
[7] Erico Sachs. Caminho e caráter da revolução brasileira, partes I e II. In: Polop: uma trajetória de luta pela organização independente do proletariado. Salvador: CVM, 2009.