Uma cisão no movimento sindical norte-americano: significado e importância para a luta dos trabalhadores em todo o mundo
- encontraponto
- 28 de jul.
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Eduardo Stotz
Apesar do atual agravamento das contradições do capitalismo conduzir o mundo à catástrofe, o operariado não tem agido como classe antagônica. Contudo, precisamos estar atentos às formas pelas quais o movimento sindical, em suas disputas internas, manifesta o enfrentamento das forças do capital. Neste breve ensaio examinamos o que se passa no centro hegemônico do imperialismo.
Em 27 de abril deste ano, a organização Unite All Workers for Democracy (UAWD) deixou de existir [1]. Corrente sindical organizada em 2019, a UAWD foi responsável pela conquista da eleição direta (um associado, um voto) para o United Workers of America [2], favorecendo o surgimento de uma nova liderança no encaminhamento da greve, em 2023, contra as 3 Grandes da industria automobilística (General Motors, Ford e Stellantis). Entretanto, após esses sucessos, num processo surpreendente, a maioria resolveu dissolver a organização e, separada da minoria, constituir outra entidade.
A cisão da UAWD expressa o desfecho das crescentes divergências entre dois grupos organizadas na sigla. Em termos de votação, 160 votos contra 137 decidiram que a UAWD não poderia mais trabalhar em conjunto, dadas as visões divergentes quanto à organização de um sindicato mais militante. Trata-se da posição da maioria, porquanto a minoria alega a existência de tensões desde o início da constituição da corrente sindical em 2019, as quais teriam sido superadas, mas, diante da crença da impossibilidade de trabalhar juntos, propuseram que a maioria saísse e não fechasse a “bancada”. [3]
Nas disputas entre as duas correntes, a própria linguagem utilizada para identificar as posições estabelece uma dificuldade de entendimento mais profundo. Assim, a ala da “luta de classes” consiste na autodenominação da minoria, enquanto a acusação de “reformistas” é uma crítica desta à maioria. Há de se observar que “reformadores do UAW” é a denominação com a qual emerge e se define a UAWD desde o início, quando abrigava ambas as posições.
Quando se examina na documentação sobre o que consistiam as divergências reais percebe-se diferenças de ênfase do trabalho sindical nos locais de trabalho: para a maioria, trata-se de propiciar o treinamento para enfrentar o patronato, uma vez que, conforme escreveu a aposentada Dianne Feeley, de Detroit, membro do UAWD e veterana do UAW, numa mensagem dirigida a todos: "Sem construir ativistas e militantes locais, não podemos desenvolver a democracia de que o sindicato precisa." Obviamente os problemas nos locais de trabalho têm prioridade.
A minoria, em contraposição, entende o trabalho de base como uma oportunidade para questões políticas relevantes, a saber, a transição, na indústria automotiva, para os veículos de motor elétrico, a política tarifária do governo Trump ou o genocídio na Palestina [4]. Em outros termos entende o trabalho de base como atividades de propaganda.
Como alegam Slaughter e Brown, “os objetivos da bancada frequentemente coincidiam com as diferenças setoriais. O UAW é composto por 75% a 80% de trabalhadores da indústria. Cerca de 12% trabalham no ensino superior, serviços jurídicos e organizações sem fins lucrativos.” [...] “mas cerca de metade dos membros do UAWD vinha de fora da indústria. Os líderes da maioria obtiveram seu maior apoio das fábricas e, a minoria, de trabalhadores da assistência jurídica e do ensino superior no Nordeste, embora ambos os lados incluíssem membros de todos os setores.”
Porém, ao lado das divergências internas à “bancada”, a situação de descenso do movimento também teve sua importância. As vitórias na grande greve em 2023 logo foram deixadas para trás devido à ampla ofensiva do patronato, com demissões em massa e o não cumprimento dos acordos conquistados. Conforme Slaugthter e Brown, a sindicalização, que avançava com os resultados imediatos das greves, no começo de 2024 estancou e caiu.
O problema de fundo parece ser a ausência de uma tradição militante no movimento sindical norte-americano, há décadas controlado por dirigentes corruptos ou que privilegiam a negociação prévia com o patronato, de costas para os trabalhadores. Deve-se considerar que esse controle se mantém nos sindicatos locais.
Observamos, no caso da UAW, conforme denúncia de Chris Brooks, da Labor Notes, uma “extensa rede de clientelismo” que permitiu aos “dirigentes sindicais fornecerem milhares de empregos fora da linha de montagem” para seus associados. Tudo graças a acordos com as montadoras para aumentar a produtividade do trabalho; por sua vez, esses dirigentes receberem milhões de dólares dessas mesmas montadoras em troca de seu apoio. A corrupção é institucionalizada por meio de Centros de Treinamento entre o UAW e as montadoras, que repassa valores para dirigentes e representantes sindicais. [5]
Contudo, para Bill Parker, veterano de 44 anos do UAW na Chrysler e membro do Labor Notes [6], mesmo se os dirigentes fossem 100% honestos e incorruptíveis a posição dos sindicalistas em relação às empresas seria a mesma, porque
não são reflexo de corrupção ou satisfação individual de ganância, mas refletem algo pior: o fracasso do sindicato em se manter como uma instituição independente da classe trabalhadora, com uma filosofia separada e distinta daquela da empresa. (...) Os problemas que enfrentamos decorrem da incapacidade do sindicato de ter uma agenda independente das empresas. E esse é um processo que se arrasta há anos.
Um sindicalismo burguês, diríamos.[7]
O desafio para os grupos que iniciaram o processo de democratização do sindicato sob a sigla UAWD, agora cindida em duas correntes, consiste em levá-lo adiante para dar poder aos representantes eleitos nas empresas e desses às bases [8], na medida em que lutam contra o trabalho temporário, a intensificação e a sobrecarga de trabalho, pela defesa dos operários imigrantes ou no questionamento dos horários rotativos e noturnos (quatro turnos de 10 horas).
A democracia direta é condição dos operários fazerem o aprendizado do confronto de interesses entre trabalho e capital por sua própria conta, de modo a serem capazes de transformar a luta econômica, de caráter sindical, forma elementar da luta de classes contra a burguesia e seu sistema de dominação, no primeiro passo para a luta política, ou seja, luta de classes enquanto tal.
Essa possibilidade será definida pela conjuntura. Sabemos que o avanço da extrema-direita e, por sua vez, da xenofobia contra os imigrantes, caminha de mãos dadas com o reforço do nacionalismo e a escalada da guerra inter-imperialista, acentuado a competição entre os trabalhadores no interior de uma mesma empresa, setor, país e entre os países. Condições que, cada vez mais, convocam a mobilização independente dos militantes de base em defesa dos direitos dos trabalhadores lado a lado com os operários imigrantes, contra a guerra e pela paz, na perspectiva do internacionalismo proletário. Tal mobilização constitui um passo fundamental para uma efetiva transformação dos sindicatos em instrumentos de luta dos operários como classe na direção de uma outra sociedade.
Notas
[1] Uma tradução literal da denominação Unite All Workers for Democracy é “Unir todos os trabalhadores pela democracia”, que corresponde aos propósitos desta corrente sindical organizada no interior do UAW.
[2] O UAW é um sindicato importante no país e no mundo, com mais de 400.000 membros e 580.000 aposentados. A denominação completa da sigla UAW é United Automobile, Aerospace and Agricultural Implement Workers of America. Fundado pela Federação Americana do Trabalho (AFL) em 1935, representa os trabalhadores desses setores produtivos nos EUA, Porto Rico e Canadá.
Para uma auto-identificação do UAW acessar https://uaw.org/about/#:~:text=UAW%2Drepresented%20workplaces%20range%20from,Comprehensive%20training%20and%20educational%20programs.
Informações mais detalhadas podem ser encontradas na publicação Solidarity em https://uaw.org/wp-content/uploads/2024/02/2023_new_member_mag.pdf
[4] O documento da minoria está disponível no link assinalado na palavra “plataforma” citada no artigo de Slaughter e Brown, referido na nota 2. Para uma avaliação coletiva do processo de dissolução da UAWD na perspectiva ver https://bostondsa.org/2025/06/24/uawd-dissolved-a-report-on-the-working-mass-forum/
[5] Ver os artigos de Chris Brooks em https://labornotes.org/2019/12/six-uaw-locals-back-direct-elections-top-officers (2019) e https://labornotes.org/blogs/2020/02/who-corrupted-auto-union-criminal-employers-did
[6] A entrevista com Bill Parker encontra-se em https://labornotes.org/2018/02/interview-corruption-and-collaboration-uaw
[7] Para compreender essa expressão, indicamos os textos: https://centrovictormeyer.org.br/o-sindicalismo-burgues-no-brasil/ e https://centrovictormeyer.org.br/sindicato-por-empresa-a-ameaca-de-um-novo-atrelamento-ao-estado-burgues/
[8] Idem à nota 6.
Imagem de capa: Membros da UAWD na convenção da UAW em 2023 - Labor Notes.


