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O bolinho de arroz da Dona Inês

  • encontraponto
  • há 27 minutos
  • 5 min de leitura

Eduardo Stotz


No sábado, 30 de julho de 2005, tive a oportunidade de conhecer Goiás Velho, a antiga capital do estado de Goiás. Informações diversas me fizeram saber que isso aconteceu porque era uma cidade “acanhada” demais para crescer, sendo a capital transferida para Goiânia. Fundada em 24 de outubro de 1933 pelo médico e político Pedro Ludovico Teixeira, a cidade de Goiânia, planejada para comportar 50 mil habitantes, tem hoje uma população superior a um milhão de moradores. Isso eu leio na lista telefônica. Entretanto demorou para assumir a condição de capital. Ninguém sabe precisar quando, mas é provável ter acontecido durante a Marcha para o oeste, organizada por Getúlio Vargas durante o Estado Novo. Uma guia turística, irá dizer-me depois, na Casa de Cora Coralina, ter sido bom, pois Goiás Velho manteve a tranquilidade dos dias atuais.


Imagino que vou encontrar uma cidade semelhante à Diamantina ou Ouro Preto, resultado comum do garimpo de ouro que sustentou a última fase da economia colonial. Para chegar lá se passa um bom tempo de viagem. Uma viagem pela vastidão de terras planas, vermelhas, num terreno levemente ondulado por colinas suaves, com gados e plantações de cana de açúcar alternando-se dos lados da rodovia. A paisagem de repete: vastas áreas de capim a essa época do ano seco; capões ou ilhas de mato isoladas no meio das fazendas em “cumprimento da obrigação de reservar áreas de mata natural”; feixes de cana queimadas ali, milhares de pés com suas flores mínimas de cor prateada, acolá. O pouco que os proprietários ainda guardam são matas ciliares, ao longo dos córregos.


As cidades do meio do caminho são núcleos de uma economia agrária dominada pelo latifúndio, nos quais se percebem vestígios do mundo caipira. Em Inhumas, galinhas ciscam a praça em volta da rodoviária. Mais adiante, num terreno baldio, vê-se uma plantação de mandioca. Segue-se capim e muitos ipês, amarelos e roxos, mais gado, cana de açúcar, córregos, colinas, tudo passando velozmente diante dos olhos. Então, um motel em meio a lojas comerciais, de nutrição animal a ferragistas. Mais ao longe, fábricas de ração e produtos agropecuários como adubos e talvez agrotóxicos (“defensivos agrícolas”). Na parada do ônibus da Viação Moreira em Itaberaí leio um aviso para cuidar-se contra a dengue no verão. No banheiro masculino, ainda se caga de cócoras.


Duas horas depois, avisto a Serra Dourada que se estende por quilômetros a perder de vista. É uma formação rochosa parecida com a Serra do Cipó, em Minas Gerais. Aqui parece que a vegetação típica do cerrado, a 130 quilômetros de Goiânia, foi preservada pelo tempo lento da vida social desde a transferência da capital. Então chega-se a Goiás Velho, ou simplesmente Goiás. A parte histórica da cidade descobre-se depois do Mercado. O casario das áreas mais nobres – o assim chamado centro histórico – está tombado ou inventariado como bem público, coisa que não acontece com as moradias situadas nos bairros mais afastados, onde mora a gente pobre da cidade.


No brevíssimo tempo disponível desta estada, visito a Casa de Cora Coralina, o pequeno museu da casa da ponte. Conduzido por Maria José, participo de um grupo que se encanta com a singela vida daquela mulher nascida em 1889 que se tornou poetisa conhecida nacionalmente na velhice, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, em artigo publicado no Jornal do Brasil em 1980. Para ela, escrever poemas significava respirar entre a feitura dos doces de frutas para vender e garantir a sobrevivência, ou no descanso. O melhor da vida é o trabalho, dizia.


Viúva há muito tempo, assim liberta do marido patriarcal e com os filhos criados, tornou à casa onde nasceu e lá, na margem direita do Rio Vermelho, escreveu poemas e mais poemas, lições de vida aprendidas em meio a contradições, lutas e pedras.


Nas paredes, a memória de suas cartas, fotografias, objetos e utensílios. Referências às duas pessoas de sua convivência diária: Vicente, o jardineiro –

“displicente, exato, irredutível” – e Maria “Grampinho”, a catadora de lixo que às vezes dormia no porão da casa. Na cozinha, o original de uma carta escrita a uma amiga na qual, ao falar dos doces, louva a arte mais nobre, divina, a da culinária. A escrivaninha, os cadernos de escritura poética, um exemplar do livro Poemas de Becos em Goiás e Estórias Mais”, outros livros, algumas roupas, aliás, bonitas — os seus bens. Assim passou o resto de seus dias, tendo a oportunidade do reconhecimento público em vida. Morreu em 1985 e alguns meses depois foi-se também Maria “Grampinho”. Dela permanece sobre a cadeira, objeto museológico, talvez único no mundo, a trouxa de suas traias.


Procurei por Frei Marcos, da diocese de Goiás, mas estava descansando do almoço. Penso nas muitas histórias de lavradores e nas iniciativas de Dom Tomás Balduíno, bispo da diocese, com o pessoal da Comissão Pastoral da Terra. Ali tomou forma o “Meio Grito”, experiência de pesquisa realizada pelos ativistas camponeses que Carlos Rodrigues Brandão relata no livro “Pesquisa Participante”, publicado pela Editora Brasiliense.


Não distingo, nas lojas abertas, um artesanato muito criativo. Talvez deva buscá-lo noutros lugares, como Pirenópolis. Porém Goiás Velho tem sua tradição na festa religiosa da Semana Santa. É a Procissão do Fogaréu, onde avulta o farricoco. Compro uma figurinha em barro. Um jovem me explica que na quarta-feira uma turma de uns 40 farricocos saem da igreja matriz em busca de Jesus, o Nazareno. São os soldados de Herodes. Percorrem as ruas às escuras, as tochas a iluminar o caminho que leva à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e depois à de São Francisco. De lá saem com o estandarte do Cristo preso. Todo ano, à meia noite desta quarta-feira, o Nazareno é novamente entregue ao poder romano. Morrerá outra vez sem que muitos dos fiéis saibam que a cerimônia veio de além-mar, trazida da Espanha, país ultra católico. A procissão, antes rápida, transformou-se em marcha para os efeitos das luzes da mídia televisiva. Tudo assume as formas da “mudernage”, diria Elomar. Até os restaurantes populares de comida goiana a 5 reais são anunciados pelas palavras self service.


Mas o bolinho de arroz de Dona Inês ainda é o mesmo. Bom é o doce – que acaba cedo. [1] Será que Cora Coralina nos oferece esses bolinhos na sua poesia? Porque é nestas pequenas coisas e gestos que a humanidade se enriquece, amplia, pulsa de alegria. Formas de deixar marcas neste mundo vão.


Nos versos da poetisa goiana,


Não morre aquele que deixou na terra


a melodia de seu cântico na música de seus versos




[1] O nome completo de dona Inês é Inês Braz Alves. Entrevistada, ela disse fazer esse bolo profissionalmente há quarenta e dois anos e “que aprendeu a receita com a sua mãe quando morava na fazenda, ela era feita no fogão a lenha”. Consta no artigo apresentado por Daiane Cardoso dos Santos em 2019 ao Curso de Turismo da Universidade Estadual de Goiás.


*Escrito em 02 de agosto de 2005, revisto em 16 de novembro de 2025.


Imagem de capa: frame do documentário Cora Coralina - Todas as vidas

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