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Anotações sobre os EUA no caminho da guerra e o antimilitarismo

  • amstotz
  • 19 de mai.
  • 6 min de leitura

Eduardo Stotz


O consenso nas esquerdas de que o mundo caminha para a guerra, referindo-se à Terceira Guerra Mundial, obscurece o fato de que nos encontramos em plena guerra, apenas de outro tipo, diferente da convencional, que caracterizou o século XX. Apresentamos a seguir algumas notas a esse propósito e da necessidade de se opor à guerra numa perspectiva revolucionária.


1. O segundo mandato de Trump teve início com a demonstração de que o governo republicano pretende novamente e, outra vez [1], enfrentar o desafio da China. Na posse, o mundo assistiu a um verdadeiro ritual da nova configuração de poder adotado pela potência imperialista. O presidente colocou as cartas na mesa ao apontar para grandes empresas de tecnologia de automação como os verdadeiros "áses" do baralho, capaz de resgatar o país do declínio em que se encontra. A aposta estadunidense está depositada nos avanços da inteligência artificial generativa e suas aplicações, sobretudo militares, a serem implementados pelas Big Techs. [2]


Trump dá sequência à tendência histórica de aumento dos subsídios governamentais às grandes empresas, como as subvenções federais do  Chip &  Act do governo Biden, e envolve, igualmente, o aumento do orçamento militar governamental. Os interesses aqui são os do chamado complexo industrial-militar, na qual despontam as empresas gigantes (Boeing, Lockheed, Raytheon, Northrop e General Dynamics) e seus contratos bilionários com o Departamento de Defesa. 

A prioridade à IA, dada a importância geopolítica, pode adquirir um impulso mais forte e amplo na denominada “nova guerra fria”. Em outros termos, o financiamento e subsídio à incorporação dos avanços na tecnologia da automação — particularmente da Inteligência Artificial, nos equipamentos militares e no desenvolvimento de armas autônomas letais — tem como alvo prioritário a China.


2. Pelo que afirmamos, as formas de guerra atualmente presentes entre as potências imperialistas não seguem mais os passos da “guerra convencional”, característica das duas guerras mundiais do século XX, e da intervenção militar dos EUA, na última e mais significativa guerra, na qual foram derrotados, a Guerra do Vietnã (1960-1975). Enquanto até aquele período entendia-se guerra como invasão e ocupação, desde então temos confrontos bélicos localizados conduzidos por governos fantoches ou “guerras por procuração”, com uso extensivo de artilharia e com poucas tropas militares, nos quais a Inteligência Artificial é a tecnologia de ponta. Ressaltemos que os avanços no desenvolvimento militar baseado na IA dependem em parte do que acontece no campo de batalha, verdadeiros laboratórios monitorados à distância, a exemplo do que acontece na Ucrânia. O boicote econômico constitui outra arma, de modo a “quebrar” o inimigo na retaguarda do front. Esse novo tipo de confronto bélico tem sido chamado de 'guerra híbrida'.

 

Não fica excluída, contudo, a possibilidade da retomada da guerra convencional e, assim, do desencadeamento da Terceira Guerra Mundial, na qual as posições das potências estejam diretamente em jogo. O risco, aliás, decorre das escaladas militares nas frentes onde a guerra está em curso e dos dispositivos para seu desencadeamento. É necessário lembrar que as mais de 700 bases militares norte-americanas espalhadas pelo mundo, com navios de guerra fazendo constantes exercícios militares,  permitem aos EUA atacar alvos a partir de vários pontos do planeta.

 

O apelo de Xi-Jinping pela “paz e desenvolvimento” cai, nos EUA e seus aliados,  em ouvidos moucos, porque estes planejam vencer a disputa econômica com a China mediante a guerra em curso, em sua forma híbrida. Mas a potência imperialista mundial não esquece o provérbio romano antigo: Si vis pacem, para bellum – "se queres a paz, prepara a guerra". Para os EUA a solução da guerra no sentido literal, ou seja, bélico, está posta, como afirmamos, enquanto tendência mais forte. Vale tanto para áreas conflagradas, a exemplo do Oriente Médio, onde a ampliação territorial das fronteiras de Israel tem por alvo estratégico o Irã, possível novo front de luta entre os EUA e a Federação Russa; assim como para as novas áreas de expansão do ambicioso programa Cinturão e Rota, mediante o qual a China pretende, através de investimentos em infraestrutura, baixar os custos do comércio mundial em seu favor. A recente adesão da Colômbia a este programa acendeu, aliás, o sinal vermelho em Washington para a ameaça imediata aos seus interesses na América Latina.

 

Importante assinalar ainda que os interesses geopolíticos também são imediatamente econômicos, envolvendo a apropriação de matérias-primas estratégicas [3], inclusive sob alegação de assegurar a “transição para uma economia descarbonizada” mundialmente proposta pelos países signatários do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, órgão das Nações Unidas. 

  

3. Este desenvolvimento do imperialismo norte americano acarreta o surgimento de “filosofias” ultra reacionárias. Interessante observar o nascimento de uma vulgarização da filosofia política  no grupo das empresas de tecnologia, que agora aparenta ter a hegemonia na condução da política externa e nos negócios dela decorrentes, no governo Trump. 


No artigo O guia para salvar a América, de Gideon Lewis-Kraus, publicado em O nova iorquino, de 19 de abril de 2025, o nome de Alexander Karp, “filósofo” e CEO da Palantir Technologies Inc. está na pauta. O presidente-executivo da empresa defendeu a ideia de recuperar o complexo industrial-militar com a revitalização tecnológica necessária, de modo a efetivamente tornar o país “grande” e, assim, “salvar a América” da China. [4] Karp na verdade apropria-se e dá sequência ao mesmo propósito de Eric Schmidt, ex-CEO da Google e consultor dos governos dos EUA.


De acordo com a Times, "ao incluí-lo na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo, a revista observou que, em uma carta aos investidores, Karp citou The Clash of Civilizations, de Samuel P. Huntington: "a ascensão do Ocidente não foi possível 'pela superioridade de suas ideias, valores ou religião... mas sim por sua superioridade na aplicação da violência organizada'". [5]


Quando os impérios se confrontam a única solução é a guerra, na qual somente uma potência será vencedora.

 

4. As manifestações contra a guerra, na perspectiva do internacionalismo proletário, constituem o único caminho para a impedi-la e abrir caminho para uma nova sociedade. Tarefa assaz difícil porque o status quo burguês capitalista — implícito na defesa das nações em cada país — é aceito pela maioria dos cidadãos, inclusive dos proletários. A ideologia imperialista ocidental procura mobilizar os velhos temores do comunismo em nome da defesa armada da democracia representativa, isto é, burguesa.  Mais grave, numa situação hipotética de recessão prolongada e em meio à pobreza, o recrutamento militar provavelmente será um apelo que, sabemos pelas experiências passadas, encontrará forte eco entre a juventude do proletariado, sobretudo em áreas pauperizadas como as do Cinturão da Ferrugem, regiões do Meio-Oeste e Nordeste dos EUA, que passaram por significativo declínio industrial.


Contudo, como observou Vicente Navarro, aceitar o status quo não é uma questão de preferência, mas de falta de alternativa concreta. [6] Ao longo dos últimos 40 anos, os movimentos operários e dos trabalhadores desfizeram-se, as lutas refluíram para as fábricas e locais de trabalho. Os movimentos antibelicistas, principalmente entre os universitários, não percebem as manifestações da “guerra híbrida” enquanto guerra e restringem-se por enquanto a combater as expressões nacionais das guerras – e ainda sem identificar os interesses das  guerras por procuração, a exemplo da Ucrânia e, pois, de assumir que se tratam de conflitos militares regionais de caráter interimperialistas e, portanto, contra o sistema capitalista subjacente. 



Notas


[1] A política externa dos EUA a respeito da China passou por uma mudança radical a partir da crise econômica de 2008, quando a recessão americana impôs um novo rumo econômico e político à China, levando-a à condição de potência concorrente aos EUA e uma ameaça à sua hegemonia mundial. Para uma narrativa histórica da política externa dos EUA, com ênfase nas posições governamentais, ver As origens bipartidárias da nova Guerra Fria, de Van Jackson e Michael Brenes, disponível em <https://jacobin.com.br/2024/11/as-origens-bipartidarias-da-nova-guerra-fria/


[2] Encerrada a primeira batalha da guerra comercial em favor da China, o enfraquecimento da base industrial avançada chinesa passa a primeiro plano na política externa estadunidense. Em entrevista para o jornal Valor, o pesquisador Edward Fishman, que tem uma carreira no Departamento de Estado, Tesouro e Pentágono, afirma que o controle da exportação de semicondutores impostos pelos EUA à China tem até o momento dado vantagem aos primeiros, mas considera a equiparação ser uma questão de tempo. Valor, 16.05.25: “A era da guerra econômica”. Não significa que a luta no plano econômico cessará; pelo contrário, tende a generalizar-se e a agravar-se, inclusive porque a China precisa enfrentar a emergência de novas potências, como é o caso da Índia.


[3] A definição foi extraída do livro A era do imperialismo, de Harry Magdoff (1978}. As atuais matérias-primas estratégicas ou críticas, como a mídia as designa, constituem elementos químicos encontrados em minérios, de difícil extração, cujas propriedades permitem seu uso numa infinidade de aplicações tecnológicas, a mais divulgada sendo em baterias elétricas para automóveis. Para mais informações ver Jornal da USP 19.11.2021, disponível em

A China detém as maiores reservas mundiais e a maior capacidade de extração e processamento, de 60% a 80% respectivamente.


[4] Palantir Technologies Inc. é uma empresa especializada em serviços de software e de informação para o governo dos EUA, independentemente do presidente em exercício. Criada em 2004 com o investimento inicial de  2 milhões de dólares da CIA e o aporte financeiro mais vultuoso de Peter Thiel. A CIA interveio por meio da companhia In-Q-Tel. Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/Alex_Karp 


[5] Perfil de Karp no Wikipedia.


[6] Vicente Navarro. Produção e Estado de Bem-Estar. O contexto político das  reformas. Lua Nova. São Paulo: n.28/29, 1993, p.157-199.


Imagem de capa: site Outras Palavras

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